Conferência Mundial sobre Necessidades
Educativas Especiais, organizada pela UNESCO, em Salamaca, em Junho de 1994,
consagrou um conjunto de conceitos como “Inclusão” e “Escola Inclusiva” que
passaram a fazer parte da gíria entre os profissionais ligados à educação.
Para muitos a Declaração de Salamanca
representa a consagração de uma educação que atende às diferenças individuais,
e ninguém exclui na mesma escola. Para outros, trata-se de um novo discurso
educacional adequado a uma nova economia mundial que integra ricos e pobres, trabalhadores
e desempregados, normais e anormais num mesmo sistema de exploração, mantendo
todas as abissais desigualdades sociais. Tudo pode ser rentabilizado e gerar
mais valias.
O tema não é novo. Durante séculos o debate
sobre a exclusão/integração esteve centrado sobre a questão da natureza humana.
A primeira fronteira entre os homens está na concepção que cada um vai criando
sobre a natureza humana. A melhor prova disso é a falta de unanimidade que
existe quando são colocadas questões, tais como: O que é o homem?
Todos os homens são iguais ou uns são mais
iguais que outros? A natureza de um branco é igual à de um negro?. Todas as
definições pressupõe sempre uma relação de integração/exclusão. A única saída
seria evitar todas as definições sobre o Homem. Mas é isso possível?
Etimologicamente, a palavra natureza deriva do
latim natura (gnatura), natus, gnetus, nasci (nascer), que, por sua vez, provém
de uma raíz comum. Gena, ou, em indo-europeu, g`n, que possui formas verbais em
quase todas as línguas. A tradição filosófica consagrou que a natureza de algo
é o seu ser, a sua essência ou substância. A
natureza humana é pois um conceito ideológico que tem servido para
fundamentar as mais dispares teorias políticas e educacionais.
1. 1.
Natureza da Natureza Humana
A matriz do pensamento ocidental é grega, e
para a formação desta a medicina desempenhou um papel incontornável. Werner
Jaeger na sua monumental obra Padeia -, demonstrou como no século V a.C, o
pensamento grego se cinde em duas correntes que acabaram por modelar as nossas
concepções actuais sobre educação. Ambas se apoiam em duas visões divergentes
sobre a natureza humana.
Os sofistas dissociando a natureza física das
convenções humanas, acabaram por atribuir a estas últimas o fundamento de todas
as desigualdades entre os homens. A
natureza humana foi entre eles concebida de uma forma igualitária.
“Bárbaros e gregos, temos todos a mesma natureza, em todos os aspectos”, afirma
o sofista Ateniense Antifonte (A Verdade).
O fundamento das diferenças nacionais e das
desigualdades entre os homens não radica na natureza, mas nas convenções
sociais decorrentes de relações de domínio que os homens foram estabelecendo
entre si. Retenhamos esta concepção, pois a mesma irá inspirar no século XVIII
a emergência de uma importante vertente do iluminismo e muitas das nossas
ideias contemporâneas.
A oposição a estas ideias é frequentemente
associada a Sócrates (filho de uma parteira), Platão, mas também a Aristóteles
(filho de um médico). Como demonstrou Jaeger, a sua fonte de inspiração comum
foi a medicina do tempo. A medicina hipocrática forneceu-lhes alguns conceitos
científicos que cada um a seu modo
utilizou de forma magistral.
O primeiro conceito foi o de que o homem é em
grande parte produto das condições naturais em que nasce e se desenvolve.
Hipócrates recomenda aos aprendizes da arte:
“Quem quiser aprender bem a arte de médico
deve proceder assim: em primeiro lugar há-de ter presente as estações do ano e
os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à
sua essência específica e quanto às suas mudanças”. A partir desta análise, o médico, estaria
apto a deduzir as enfermidades de uma dada população. A ordem do Todo determina
o estado de cada coisa singular, determinando-lhe a sua natureza.
O segundo foi o da harmonia global que reina
entre todas as coisas. As enfermidades para Hipocrates não são mais do que as
consequências resultantes da sua alteração da ordem estabelecida.
O terceiro conceito essencial foi o da norma
que deve, em cada caso, ser seguida para que o equilíbrio não se rompa. Afim de
manter o equilíbrio que permite a saúde, Dócles, na sua obra Da Dieta,
estabelece um vasto conjunto de prescrições que cada um deve cumprir desde que
acorda.
A concepção natureza humana é assim definida
de forma estática, para o equilibrio da qual é necessário a manutenção da ordem
estabelecida.
Com base nestes conceitos, Sócrates, Platão e
Aristóteles, defenderão cada um a seu modo, a diversidade da natureza
intrínseca dos homens. Platão dirigindo-se aos cidadãos escreve: “Cidadãos,
deveremos dizer-lhes segundo a nossa fábula, sois todos irmãos, e no entanto
Deus vos constituiu de modo muito diferente. Alguns de vós têm o poder de
comandar, e na composição destes ele fez entrar o ouro; daí o facto de terem
também direito às maiores honras. Outros foram feitos de prata, para serem
auxiliares.
E outros ainda, que são os lavradores e os
artesãos, foram feitos de cobre e ferro; e essas espécies geralmente se
conservarão em seus filhos” ( A República). Aristóteles, na sua obra Política,
demonstra como as tendências, capacidades e aptidões humanas são definidas pela
região de origem, sendo todavia de natureza desigual: “Desde o nascimento,
alguns estão destinados a mandar e outros a serem mandados…”
. O mesmo é dizer uns quando nascem estão
destinados a serem senhores, outros escravos (Politica).
A definição da norma é essencial para manter a
harmonia do todo, a integração das suas partes, e excluir tudo o que a possa
perturbar. Etimológicamente, “norma” é uma palavra latina que significa
esquadro. Rapidamente passou a
significar o que deve ser. O estado normal indicará o estado habitual e ao
mesmo tempo o estado ideal. A ameaça à norma está na anomalia, do grego
Ómolos que significa desigual, escabroso.
O Ómolos é o irregular, o rugoso, o sem lei, o sem valor (Ch. Descamps). Para
manter a Ordem no Cosmos é necessário excluir todos os Ómolos.
Compreende-se assim, a razão pela qual, na
Antiguidade, a matança de crianças deficientes era encarada como um
procedimento natural. Elas não tinham lugar na Ordem estabelecida.
2. 2.
As Culpas da Natureza Monstruosa
Da Antiguidade à Renascença o conhecimento do
mundo vivo pouco mudou. O que se alterou
foram os critérios de exclusão. Durante o Renascimento, na natureza, tudo é
possível, porque o poder criador de Deus não têm limites. “Todos os possíveis
encarados pela imaginação humana eram realizados pela vontade divina” (François
Jacob, A Lógica da Vida). Nada acontece ao acaso, tudo tem uma causa natural.
Quando uma rapariga nasce com duas cabeças ou
quando um homem tem, à guisa de cabelos “pequenas serpentes vivas”, escreve
Montaigne, é porque há excesso de semente. Quando o homem nasce sem braço ou
sem cabeça é, ao contrário, por insuficiência de semente. Mas se uma mulher
deita ao mundo um filho com cabeça de cão, a culpa não é da natureza, que “faz
sempre o seu semelhante”, mas da mulher, que se entregou a actos repreensíveis com um animal
(Ensaios).
Estes seres são assim reprovados não por serem
monstruosos, mas porque testemunham comportamentos pecaminosos. A sua exclusão
adquire a dimensão de uma reparação moral. É em nome da moralidade que devem
ser excluídos.
3. 3.
A Hierarquia dos Seres
Até ao final do século XVIII, como assinala
François Jacob, continuou a não existir uma fronteira nítida entre os seres e
as coisas. O ser vivo prolongava-se sem hiato até ao inanimado. A profunda
alteração deu-se na classificação dos seres segundo categorias rigidamente
determinadas. Numa longa cadeia hierarquica tudo tem um lugar determinado, uma
categoria ou uma espécie definida.
A ciência moderna procurou determinar com
rigor o lugar para os diferentes Ómolos. Lineu, no seu Systema Naturae, incluiu
a espécie humana no reino animal, sob uma única designação específica – Homo
sapiens – e dividiu-a em seis raças, seguindo um critério em grande parte
geográfico: europeia, amerindeana, asiática, africana, selvagem e monstruosa.
Esta última raça, como escreve Clara Queiroz,
sobrepunha-se um pouco a todas a outras por ser constituída por
indivíduos com malformações passíveis de ocorrer em qualquer região.
Estes indivíduos adquiriam assim um estatuto à
parte, num sistema de classificação do seres vivos, embora não possam ser
considerados propriamente humanos. As semelhanças físicas com outros homens não
bastam.
No topo da hierarquia dos seres humanos surge
a raça branca. Blumenbach, em 1775, o fundador da antropologia, sustenta que
esta raça é a mais primitiva e nobre dela derivando todas as outras por um
processo de degenerescência. Buffon, na sua História Natural, partilhará deste
ponto de vista.
Mas não basta ser branco, advertiu Réne
Descartes, é preciso também não ser um louco, cujo “cérebro está perturbado e
ofuscado pelos negros vapores da bílis” (Meditações Metafísicas). Num universo
organizado, o lugar dos loucos, não é na rua, mas atrás dos muros do manicómio.
Principiava desta forma o modelo da segregação.
Na sequência de uma vasta acção policial, em
1657, o hospital central de Paris, acolhe numa só manhã cerca de seis mil
pobres, loucos, desempregados, viciosos, profanadores. Os doidos ocupam o lugar
dos leprosos. Na hierarquia dos seres,
os loucos são uma ameaça à razão triunfante da modernidade.
3.1. 3.1.
A Escola Excludente
A escola até ao final do século XVIII não
admitia no seu seio todos aqueles que estavam excluídos da ordem social.
Poderia ser de outra forma? Claro que não. Os únicos que mereceram algum
cuidado forma os orfãos e as crianças abandonadas. Era facilmente postas a
render, ao serviço da Igreja ou na obra de povoamento das colónias pelo Estado.
Em Portugal esta utilização está amplamente
documentada. Por toda a Europa foram raras as tentativas de educação dos
deficientes. Entre as primeiras conta-se a levada a cabo pelo frade Pedro Ponce de León, em
meados do século XVI, destinada à educação de 12 crianças surdas. É preciso
esperar pelo século XVIII para que uma nova visão da deficiência surja. Diderot
teve neste aspecto um papel importante, embora pouco divulgado.
Em 1749 publica a “Carta sobre os Cegos para
Uso dos que Vêem”, e dois anos depois, a “Carta sobre os Surdos e Mudos para
Uso dos que Ouvem e que Falam”. Cegos, surdos-mudos, revelam nesta espécie de
manifesto capacidades insuspeitas. É neste contexto que o abade Charles Michel
de L`Epice criou uma escola pública para surdos (1775), e Velentin Hauvy fundou
um Instituto para crianças cegas (1784). No ensino como na sociedade, as
diferenças genéticas reais e imaginárias entre os homens, continuavam a ser um factor
de exclusão social sobre o qual se alicerçavam todas as formas de desigualdade.
Não é de admirar a raridade destas iniciativas de apoio aos deficientes.
4. 4.
A Humana Natureza Humana
Na segunda metade do século XVIII, assistiu-se
a um verdadeiro cataclismo nas concepções vigentes sobre a natureza humana. A
concepção do universo estático começa a ser substituída por a ideia de um
universo em evolução, sendo o homem encarado como um produto da mesma.
Os “sofistas” do tempo, os enciclopedistas, demonstraram
que o que diferenciava os homens eram as convenções sociais e a educação. As
suas ideias acabaram por incendiar o mundo.
Na Revolução Americana e depois na Revolução
Francesa proclama-se a igualdade de direitos de todos os homens (1776 e 1789). Ambas
as Declarações assentam na pressuposição da universalidade da natureza humana e
dos seus valores. A Natureza de cada homem reporta-se a uma Humanidade ideal
que está em todos, mas em ninguém em particular. A partir daqui este ideal,
torna-se numa referência fundamental que orienta inúmeros movimentos políticos
e educativos em todo o mundo.
Esta ambígua igualdade formal, que num
primeiro momento interessa á ascensão da burguesia, torna-se perigosa. A
comunidade científica procura então “separar as faixas de indivíduos que se
revelam um pouco menos iguais, e a confirmar a sua diversidade para os poder
excluir dum jogo em que não há lugar para eles” (F. Ongaro Basaglia ).
Malthus, na segunda edição do Essay on the
Principle of Population (1803), confirma
a necessidade da exclusão social devido à carência de recursos para todos os
homens:
“O homem que nasce num mundo já possuído pelos
outros, quando não pode obter os meios de subsistência dos pais sobre quais
pode ter justas pretensões, e se a sociedade não quer o seu trabalho, não se
pode arrogar de nenhum direito à mínima porção de alimento e não tem nenhum
motivo para estar onde está. Não há no grande banquete da natureza um lugar
desocupado para ele”.
Resta-lhe apenas a exclusão social, e a
eventual compaixão dos que têm assento no banquete. Sir Francis Galton, primo
de Darwin, em Hereditary Genius (1869) esforçou-se por demonstrar com base em
estatísticas e em estudos biológicos, como a inteligência e a estupidez eram
hereditárias. Daqui retirou a conclusão que deviam ser adoptadas medidas para
favorecer as raças e as famílias mais dotadas, mas também para diminuírem as
taxas de reprodução dos que se encontram
no extremo inferior da escala social. Estas ideias não tardaram a
inspirar muitos outros cientistas e movimentos políticos.
Estas medidas não se enquadravam todavia no
espírito da nova economia capitalista. A exclusão representava um enorme
desperdício de recursos. Por isso mesmo foi rapidamente substituída por um
sistema de segregações. Neste, todos os marginais, raças inferiores e até
deficientes, sem perderem o seu estatuto, são postos aos serviço do interesse
geral, que neste aspecto coincidia com os grandes interesses particulares.
A Casa Pia de Lisboa, fundada 1780, por
exemplo, recolhe todo o tipo de marginais, como prostitutas, vagabundos e
crianças abandonadas, pondo-as a render nas oficinas do Estado. Das prisões
saem para as obras públicas legiões de trabalhadores. Os Asilos e Orfanatos,
onde se verificam elevadas taxas de mortalidade, são instituições em tudo menos ociosas. O
lema da burguesia que só o trabalho regenera os corpos viciosos, inspira todas
estas instituições.
Michel Foucault, demonstrou que a partir de
1820, as prisões deixaram de ser vistas como simples depósitos de criminosos,
para serem encaradas como fábricas de delinquentes úteis ao sistema. Delas
saíam as operárias do prazer para alimentarem os prostíbulos, mas também grupos
que eram utilizados contra os operários, nas lutas políticas e sociais, em missões de vigilância, de
infiltração para impedir ou romper greves, etc.
“A partir do momento que alguém entrava na
prisão, punha-se em funcionamento um mecanismo que o tornava infame; e quando
de lá saía, nada mais podia fazer que tornar –se delinquente. Caía
necessariamente no sistema que dele fazia um proxeneta, num polícia ou um
informador. A prisão profissionalizava”.
As Declarações igualitaristas de finais do
século XVIII são agora reinterpretadas á luz da nova política de segregação.
John M. Daniel, em 1864, confirma que “segundo os advogados científicos da
diversidade das raças, os Negros não são homens no sentido em que este termo é
utilizado na Declaração da Independência”. A partir daí somam-se as “provas
científicas” desta diversidade que fundamenta todas as segregações.
Entre nós, Júlio de Mattos, no prefácio à sua
História Natural (1880),hierarquiza as raças humanas, colocando no topo a raça
branca, e no extremo oposto os aborígenes australianos. Ernest Haeckel, em
Maravilhas da Vida (1904), afirma que sob o ponto de vista psicológico, por
exemplo, os australianos, são mais vizinhos dos mamíferos (macacos, cães) do
que dos europeus.
Um número crescente de reputados cientistas
não se cansava de demonstrar, não apenas a falsidade da igualdade das raças,
mas também os perigos de semelhantes ideias. Entre nós, atingiram grande
sucesso as obras de Gustavo le Bon, uma verdadeira autoridade na matéria. Na
sua obra “Leis Psicológicas da Evolução dos Povos” (1910), confirma a
invariabilidade mental dos caracteres rácicos:
“Cada povo possui uma constituição mental
fixa, como os seus caracteres anatómicos, constituição de que derivam os
sentimentos, os pensamentos, as instituições, as crenças e as artes desse
povo”. Uns pertencem a raças superiores e outros inferiores. Baseado em estudos
científicos, condena o cruzamento das raças pela degenerescência que provoca,
aplaudindo, entre outras coisas, o extermínio de negros nos EUA quando estes se
revoltam. Lamenta todavia a impossibilidade de não poderem ser expulsos todos
os chineses, devido às carências de mão de obra que tal medida iria provocar.
Tudo em nome da pureza da raça superior.
A antropologia, a biologia e outras ciências
da vida, irão sistematizar as diferenças entre os homens, conduzindo à célebre
escala quantitativa da humanidade, de Frintz Lenz, publicada em Human Heredity
(1931). Não foi apenas na Alemanha Nazi que estas ideias foram perfilhadas, mas
foi lá como em nenhum outro Estado que deram lugar a uma política sistemática
de extermínio.
4.1. Escola Segregadora
Desde o início do século XIX até aos anos 60
que os deficientes viveram sob signo da segregação, mas nem todos eram tratados
da mesma forma. O surdos-mudos e os cegos foram mais rapidamente integrados no
sistema produtivo. Os deficientes mentais ficaram muitíssimo mais tempo à porta
das instituições educativas. Em todo o caso, a integração continuava a ser
sinónimo de segregação.
Em Portugal a primeira instituição destinada a
deficientes foi o Instituto de Surdos-Mudos e Cegos, criado em 1822, por
iniciativa de José António Freitas Rego. Lentamente foram surgindo, à margem
das escolas regulares, outras instituições com funções assistências e
educativas destinadas a este tipo de deficientes.
Quanto à educação dos deficientes mentais os
caminhos foram mais tortuosos. Em 1871 será criada a primeira Casa de Detenção
e Correcção para menores delinquentes “desobedientes e incorrigíveis”, e apenas
em 1911, o médico António Aurélio da Costa Ferreira inicia, de forma
sistemática, a obra de assistência aos anormais mentais.
A primeira iniciativa assumida pelo Estado na
educação das crianças anormais, ocorreu em 1922, quando o Instituto
Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa passou para a Tutela do Ministério da
Instrução Pública, e recebe a designação de Instituto Aurélio da Costa
Ferreira.
É preciso esperar pelo fim da segunda Guerra
Mundial para ocorrerem novas medidas a favor dos deficientes mentais. O
Dec.-Lei 35.801, de 3/8/1946, permite a criação de “classes especiais de
crianças anormais” anexas aos estabelecimentos de ensino primário, sob a
orientação Instituto Aurélio da Costa Ferreira. O número destas classes
especiais não param de crescer: Tiveram inicio em 1947. em 1953 eram já 31,
atingindo as 72 em 1962 ( José António Lopes Santos, 1999).
Paralelamente outras instituições foram
surgindo para apoio assistêncial e educativo aos deficientes mentais,
promovidas pelas mais diversas entidades e com as mais dispares finalidades.
A intervenção do Estado no apoio aos
deficientes é reforçada nos anos 60. A
sociedade portuguesa mostrava-se então muito sensibilizada para esta questão,
devido em grande parte, ao aumento do número de deficientes provocado pela
guerra colonial. Seja como for, em 1964, é criado o Serviço de Educação de
Deficientes, no âmbito do Instituto de Assistência a Menores (da Direcção-Geral da Saúde e Assistência).
Entre 1965 e 1970 organizou 8 escolas especiais para deficientes visuais, 10
para deficientes auditivos e 11 para deficientes mentais. Algo parecia estar
efectivamente a mudar.
5. 5.
Integrar na Desigualdade
A emergência a independência das antigas
colónias, após a II Guerra Mundial, trouxe consigo um discurso de maior
abertura às diferenças raciais. A exclusão racial desapareceu para dar lugar ao
discurso da integração das raças. O árabe de origem argelino tornou-se
subitamente francês. O preto moçambicano, guineense ou angolano, tornou-se
português. Por todo o lado o conceito de Natureza Humana tornou-se mais
permeável às diferenças.
A penúria de mão-de-obra provocada pela
Guerra, deixa o “mundo ocidental” numa situação desfavorável para competir com
os avanços tecnológicos do “Bloco Comunista”. Inúmeros estudos, nomeadamente
conduzidos pela OCDE, FMI e o Banco
Mundial revela que a “industria do ensino” revela uma espantosa improdutividade,
desperdiçando um enorme potencial humano devido a preconceitos sociais,
organização e métodos de ensino, etc.
Até à crise económica dos anos 70, a teoria do
“capital humano” inspirou muitos dos esforços integrativos no ensino
Edgar Morin, numa obra que marcou uma época (O
Paradigma Perdido: A Natureza Humana, 1973), afirmava que a definição do homem
não podia continuar a assentar apenas num único dos seus aspectos. “Precisamos
de ligar o homem razoável (sapiens) ao homem louco (demens), ao homem produtor,
ao homem técnico….”. O homem é só apreensível na sua diversidade e
hipercomplexidade. A integração estava
na ordem do dia em termos filosóficos.
Mas nada mais ingénuo do que pensar que todas
as diferenças subitamente havia desaparecido. Nos EUA Jurgen Ruesch, em 1969,
interrogava-se sobre quantos eram os socialmente inaptos. Só neste país, no
auge da sua prosperidade económica, constatava que a maioria da sua população,
estava literalmente afastada do processo produtivo. Apenas uma minoria intervinha
na criação das riquezas e na sua acumulação. A maioria apenas participava no
seu consumo, através dos múltiplos mecanismos assistênciais. Este era o
mecanismo de integração que se havia criado.
Ultrapassando as diferenças epidérmicas, os
biólogos concentraram-se, a partir dos anos 60, no DNA (ácido
desoxirribonucleico). À acção de um ou mais genes, passaram a ser atribuídas a
responsabilidade por manifestações tão diversas como agressividade,
homossexualidade, criminalidade, etc. O discurso científico procurou
fundamentar a diferença ao nível molecular. Externamente todos revelamos certas
semelhanças, mas a genética molécular descobriu abismos entre os homens.
Arthur
Jensen, em 1969, após inúmeros estudos demonstrou que cerca de 80% do
quociente de inteligência era atribuível a factores genéticos e só 20% à
componente ambiental. O discurso da
diferenciação genética voltava. Ultrapassando o nível molecular, os etnologos,
neurobiologistas, passaram a falar de predisposições, isto é, um conjunto de
factores de natureza biológica que conduzem o indivíduo a assumir certas
atitudes em vez de outras. Henri
Laborit, neste campo fez escola, ao descobrir três cérebros no cérebro humano.
A predominância de um ou outro, conduz o homem
naturalmente a certas predisposições comportamentais. Todas estas teorias
transformam o discurso da exclusão, no discurso da auto-exclusão. Certos
indivíduos, respondendo a predisposições naturais, auto-excluem-se da
sociedade, transformando em inadaptados, marginais, etc. As elites dominantes podiam finalmente dormir
descansadas: o princípio da desigualdade genética estava reposto.
5.1. Escola Integrativa
Em finais dos anos 60, nas escolas portuguesas
começam as primeiras experiências de integração de deficientes em
estabelecimentos regulares de ensino.
As declarações de princípios e a publicação de
legislação em muitos países iam no sentido de acabar com o profundo isolamento
a que até aí os deficientes haviam estado votados- particularmente os
deficientes mentais -, mas também criar-lhes condições que lhes permitissem o
acesso à vida, separando-os o menos possível da sociedade. Reafirmou-se também
o direito das crianças com necessidades educativas especiais, a terem uma
educação adaptada e fornecida em escolas regulares (José António Lopes Santos,
1999). As escolas tinham que se adaptar às crianças e não elas às escolas.
Em Portugal este processo de integração terá
sido feito em duas etapas fundamentais: Numa primeira fase entre 1973/74 e
1982/83, procedeu-se à reorganização dos serviços e criaram-se estruturas
regionais, publicou-se importante legislação sobre o assunto, mas em termos de
resultados, os passos dados foram modestos. Na segunda fase, entre 1983/84 e
1994, o sistema expandiu-se e consolidou-se o “ensino integrado”, assegurado
por equipas de ensino especial espalhadas pelo país.
O grande salto qualitativo deu-se, só a partir
de 1984, quando se alterou o próprio conceito de crianças com necessidades
educativas especiais. Estas crianças deixam de ser apenas os cegos, os surdos-mudos,
etc., para serem também todas aquelas que no seu percurso escolar são marcadas
pelo insucesso.
Assiste-se a partir de então ao lançamento de
diversas iniciativas destinadas a estas crianças com dificuldades educativas.
Em 1987, é criado o PIPSE- Programa Interministerial para a Promoção do Sucesso
Escolar. Pouco anos depois, a figura das chamadas “escolas de intervenção
prioritária”, abrangendo todas as escolas que “sejam frequentadas por um número
significativo de crianças com dificuldades de aprendizagem, inadaptadas ou
portadoras de deficiência”. Outras iniciativas prosseguiram nesta mesma
direcção.
6. 6.
A Grande Inclusão
Os anos oitenta foram marcados pela
globalização dos capitais financeiros, mas também das comunicações.
Aparentemente também se mundializou a informação, mas não o conhecimento que
contínua a ser coisa rara. As diversas economias foram todas incluídas numa
vasta economia mundial comandada pelas grandes multinacionais. Os ricos nunca
foram tão ricos e a miséria dos pobres nunca foi tão exposta.
Os países mais ricos necessitam dos pobres
para lhes sugarem as matérias primas, venderem produtos, mas também para o
fornecimento de mão-de-obra. O sistema passou a ser gerido a uma escala e numa
lógica efectivamente global.
A nova economia tornou-se hegemónica, tem-se
revelando capaz de tudo rentabilizar, inclusivé as actividades assistênciais.
As ajudas internacionais, os programas de
apoio aos excluídos revelam-se hoje investimentos estratégicos em termos
economicos. Depois da “Queda do Muro de Berlim”, o Capitalismo passa a ser
apresentado como a única alternativa realista, mesmo para os que ainda sem
mantém à margem. O objectivo é a Inclusão total.
6.1. Escola Inclusiva
A Declaração de Salamanca consagra um conjunto
de princípios, que reflectem as novas políticas educativas, consagrando os
seguintes princípios:
a) O
direito à educação é independente das diferenças individuais;
b) as necessidades educativas especiais não
abrangem apenas algumas crianças com problemas, mas todas as que possuem dificuldades escolares;
c) a escola é que deve adaptar–se às
especifícidades dos alunos, e não o contrário;
d) o ensino deve ser diversificado e realizado
num espaço comum a todas as crianças. É neste sentido que o Prof. Doutor David
Rodrigues afirma que a escola inclusiva pressupõe o modelo de pertença a uma
instituição, a uma casa comum. Passados quatro anos, o debate contínua. Pouco
mais se avançou.
7. 7.
Conclusão
A educação nunca deixou de estar intimamente
ligada a motivações de natureza econômica, política, religiosa ou mesmo
filosófica. Desligar a educação deste campo de fundo é ignorar as causas
profundas das suas mudanças. A história do ensino para deficientes é, neste
capítulo, um dos exemplos mais ilustrativos do que acabamos de afirmar.
A exclusão tem predominado sobre a integração,
e mesmo quando se fala desta última, é frequentemente para iludir as multíplas
formas de segregação social.
As escolas inclusivas podem tornar-se em mais
uma panaceia. Elas enfrentam já hoje alguns sérios problemas. Um deles é a
difícil conciliação entre a necessidade de atenderem à diversidade dos alunos,
sem diminuírem a qualidade do ensino. Um outro é o da própria reação dos pais
e alunos ditos normais, para já não falar dos professores. A aceitação do Outro
como um igual nunca foi pacífica.
Carlos Fontes
httpv://www.youtube.com/watch?v=Pwqv_uIOSGg
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